A cultura nos legou a condição de meros repositores de supermercados. Como funcionários exemplares, colocamos cada uma das coisas em suas prateleiras, ou seja em categorias facilmente reconhecíveis. Um discurso, acompanhando sua tendência ideológica – a ausência desta é em si mesma uma tendência–, determina gostos e atitudes e, de forma mais extremista, a negação de determinado fato. A criação de um mundo no qual arte pictórica e linguagem escrita são opostos é uma dessas tendências intelectuais mercadológicas.

A escrita é a fixação do código linguístico que sistematiza toda nossa comunicação pela fala. Um animal sendo caçado numa inscrição parietal pertence ao plano da representação. No entanto, para as técnicas de caça serem aprimoradas pela comunidade de caçadores, obviamente eles precisam do código linguístico. Uma dialética da caça através de imagens pictóricas levaria meses até sua conclusão – que também ocorreria com a morte por inanição dos caçadores. Mas a fala, com sua velocidade e precisão, permite um movimento dialético para o aprimoramento técnico da cultura, produzindo nossas técnicas, ferramentas, armas e rotinas de caça. O código linguístico nos permite sobretudo concluir sobre o melhor suporte para a representação pictórica da caça ou simplesmente que tipo de representação.

A divisão em dois mundos (desenho e escrita) gera resultados por toda a História. Daí resulta a paragone entre pintura e escrita persistir em nosso tempo1. Até Leon Battista Alberti, em seu De Pictura (1435)2, a pintura acompanhou impassível os parâmetros da poética clássica para sua realização. A inventio – parte da retórica que significa invenção – determinou boa parte da produção de pintores como Caravaggio, Michelangelo entre tantos. Assim o cenário nas pinturas foi o componente determinante. Ut pictura poesis: poesia como pintura. Um adendo: poesia, para muitos, traduz-se em algo meloso – geralmente nada melodioso – presente em canções do repertório da cultura de massa. Aqui não se trata dessa corrupção. Poesia é o próprio par composto com retórica, a arte (técnica) da oratória. O que as diferencia é uma questão de procedimentos, desde uso de métrica, no caso da poesia, até a matéria a ser tratada: uma deliberação em assembléia não é o mesmo que uma poesia lírica em um aniversário de um patrício. Mas as técnicas são muito semelhantes, principalmente no que tange ao placere, docere et movere (prazer, ensinar e comover). A persuasão é a arma da retórica. A poesia educa, como em Vergílio.

Retomando a arte pictórica dos séculos XV e XVI, a busca foi uma pintura narrativa – “pôr diante dos olhos”, ou seja, o conceito retórico e poético denominado enargeia. Porém Leonardo da Vinci, em seu “Tratado de Pintura”, já questionava essa relação pintura/poesia. Postulando um discurso próprio para a pintura, aspectos elaborados de modo a dar um discurso “poético” genuíno para a pintura como percepção da realidade e efeito de real passam a complementar as exigências. A herança disto foi recebida séculos adiante. O resultado dessa postura histórica é notório: as vanguardas modernistas. Entretanto, isentas de mágoa em relação ao discurso linguístico, basearam-se em experiências estéticas da literatura, ainda, para compor seu modelo, libertando-se por completo da restrição da narrativa. Certamente a poesia de Mallarmé mantém um fio até o umbigo do dadaísmo – dadá é o som do bebê e tantas outras significações. Por sua vez, a poesia moderna passou a explorar recursos extralingüísticos. Já a pintura transcendeu a tela e ganhou o discurso como fundamentação de seu discurso pictórico. “O quadro escuro”, de Kasimir Malevich, é um desses exemplos. Sem o título, o efeito do humor é esvaziado. A ironia, também.

Depois de olharmos um passado tão tedioso e carregado de termos confusos e inúteis para o passeio no shopping, desembarcamos no século XXI. Um dos produtos que as vanguardas modernistas nos ofereceram foi o design gráfico. Diferentemente da pintura, mesmo a vanguardista, esse possui vínculo obrigatório e compromisso com a escrita. Qual a função do design gráfico? A pergunta freqüente compromete-se com respostas insatisfatórias sobre seu aspecto e sua função. Retomando, o movimento dialético entre pintura e poesia é um fim em si: estético. A gênese do design gráfico reside na síntese: texto e imagem em termos simples. Por isso, isoladamente a imagem (rabisco, desenho ou pintura) assemelha-se à pintura renascentista enquanto exercício e esmero técnico, todavia muitas vezes sem enargeia (o pôr diante dos olhos).

O APURAMENTO TÉCNICO DO DESIGN PERMITE POSSIBILIDADES DE EXPRESSÃO PLÁSTICAS QUE JAMAIS TIVEMOS DIANTE DE NOSSOS OLHOS. NO ENTANTO, O ERRO EM SE PRODUZIR UM VAZIO SEMÂNTICO É TÃO GRANDE OU MAIOR DO QUE AS MESMAS POSSIBILIDADES.

Os aprimoramentos técnicos da pintura de Michelangelo e Leonardo da Vinci, ou, anteriormente ainda, a elaboração do conceito de perspectiva são sintomas muito semelhantes ao que vemos hoje.O apuramento técnico do design permite possibilidades de expressão plásticas que jamais tivemos diante de nossos olhos. No entanto, o erro em se produzir um vazio semântico é tão grande ou maior do que as mesmas possibilidades. O design, utilizando-se dos restos da abstração pictórica, encontra seu afunilamento em um abstracionismo ostracista. Ou seja, encontra imagens sem ironia, humor ou algum sinal de sentido, quase ilustrações pasteurizadas em modelos tirados da prateleira como a última novidade em shampoo para os dentes. Aparentemente novo e original, seu texto é um erro de digitação: tentaram escrever shampoo para lentes. A representação figurativa é terreno da ilustração – o limite entre ilustração e design deve ser tratado em outra ocasião –, todavia sem a transcendência mística católica. Logo tendendo ao simples representar vazio de mundos sem consistência histórica. Sem o texto, uma das premissas desse silogismo, o design gráfico é um exercício técnico historicamente amorfo, esteticamente estéril. Para este caso, basta lembrar uma lição parnasiana: com métrica perfeita, respeitando os ictos, rimas perfeitas e sempre tendo à mão uma chave de ouro, não se faz poesia. Enfim já que o designer desenha tipos, porque não aprimorar o destino reservado a eles.


  • Paragone é termo italiano que significa competição. Ver o excelente trabalho de Márcio Seligmann-Silva, Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia, Iluminuras, 1998.
  • Cit.